"Para Tribunal de Justiça do Rio, beber álcool e dirigir não é crime
O Tribunal de Justiça do Rio não tem punido criminalmente o motorista flagrado na Lei Seca por dirigir alcoolizado. Na prática, significa livrá-los da possibilidade de condenação a penas de seis meses a três anos de prisão.
A Folha pesquisou 56 processos que chegaram ao TJ, responsável por julgar recursos contra decisões dadas em primeira instância. Em 46 deles, os desembargadores decidiram parar a ação penal. Nos outros dez casos, o TJ mandou a ação penal seguir.
O argumento mais comum dos desembargadores é que os motoristas não dirigiam de maneira a colocar nenhuma vida em risco no momento em que a blitz da lei os parou.
São casos, por exemplo, em que o condutor não tinha sinal claro de embriaguez nem andava em ziguezague.
Para os desembargadores, não basta apenas ser comprovado teor de ingestão de álcool acima do previsto na lei -mais de 6 decigramas de álcool por litro de sangue (ou três copos de chope).
‘O que acontece é que muitas vezes o promotor não descreve de que forma a atitude do motorista causa risco’, diz Cláudio Dell'Orto, responsável por ao menos dez dos acórdãos que a Folha analisou (…)
Mas há divergências. A desembargadora Gizelda Leitão Teixeira, em decisão, questiona: ‘É preciso que o motorista irresponsável atropele e mate alguém para que veja-se configurado perigo?’".
Quando pensamos em um homicídio, pensamos na consequência de uma ação: se a vítima não morre, não se pode falar em homicídio. Quando muito, poderemos falar em tentativa de homicídio. Isso porque o homicídio (matar alguém) é o que os juristas chamam de crime material. Nos crimes materiais, se o resultado (morte) não ocorre, não há crime. Ou ao menos não o crime consumado, que é aquele completo ao qual já não falta nada para estar totalmente caracterizado.
Uma boa parte dos crimes que saem nos jornais todos os dias - roubo, furto, etc - são crimes materiais. Para serem considerados completos (‘consumados’), eles precisam ter gerado determinado resultado.
Existem outros crimes chamados formais, em que a lei diz qual é o comportamento do criminoso e qual o resultado que ele deseja alcançar, mas não importa que ele alcance esse resultado para que o crime seja considerado completo.
Por exemplo, o crime de corrupção ativa (pedir propina) é um crime formal porque embora a intenção do servidor público seja se enriquecer, o crime está cometido mesmo que ele não receba a propina. O crime de extorsão também é um crime formal: basta o criminoso extorquir para que o crime esteja completo, independente de a vítima entregar-lhe o dinheiro (resultado). Notaram a diferença? No homicídio você precisa agir (por exemplo, atirar) e conseguir o resultado (matar a vítima). Já na corrupção você precisa pedir, mas não necessariamente obter o resultado (receber o dinheiro).
Mas existe um terceiro tipo de crime, que os juristas chamam de mera conduta. Assim como nos crimes formais, no crime de mera conduta o criminoso não precisa produzir um resultado. Mas, diferente do crime formal, a lei sequer olha qual era a intenção do criminoso ou se ele poderia produzir determinado resultado: basta que o criminoso aja de uma forma que a lei considera não desejada. E essa é a discussão na matéria acima. A maior parte dos juristas entende que o crime de embriaguez ao volante é um crime de mera conduta. Não importa o que levou a pessoa a beber ou qual é seu objetivo ou se ela está pondo a vida de alguém em risco: basta ela estar dirigindo o carro com muito álcool no sangue para que a lei a puna. Não importa que ela esteja em uma estrada deserta: sua mera conduta (dirigir bêbada) já basta.
Mas o que o primeiro magistrado entrevistado na matéria disse leva a crer que ele tem um entendimento muito diferente e por isso não seria um crime de mera conduta. Segundo ele, se não houver exposição a perigo, não há crime. Ou seja, se não houver um resultado (causar risco), não há crime.
Os crimes de mera conduta – que são poucos – existem para punir comportamentos que são tão indesejados pela sociedade que a lei sequer menciona qualquer resultado justamente para evitar que o criminoso possa se esconder atrás de alguma desculpa ou que a acusação precise perder tempo tentando provar que o acusado causou algum resultado ou tinha determinada intenção.